quarta-feira, 23 de abril de 2008

Ironia

Era um escritor. Era também um desconfiado. Tanto que não deixava que ninguém lesse seus escritos. Aposentou o computador com medo da Internet, deixou de lado a máquina de escrever por receio de levarem sua fita usada.
Acabou se isolando do mundo, ficando apenas com seus manuscritos. Melhor era prevenir. Mal sabia ele que o afanador de seus textos seria um franzino lápis.

domingo, 20 de abril de 2008

Trânsito

Gritou em plena rua. Estava parada esperando o sinal e deve ter se lembrado de qualquer coisa.
[Um acidente no peito, uma batida descompassada do coração.]
Os que ouviram imaginaram o prenúncio de um evento no trânsito. Mas as buzinas eram internas.
[Mesmo assim todos as ouviram.]
E ela ali. À espera de qualquer atropelamento menos brusco que o de suas lembranças.
Sua vida era uma estrada sem transeuntes.

sábado, 12 de abril de 2008

8:43

Hoje fez manhã de outono.
Não que a estação estivesse ausente dos calendários, mas apenas hoje ela apareceu escrita no céu, em maiúsculo azul. O vento abraçou as crianças que brincavam sob o sol e as famílias nem perceberam seu braço tímido e conselheiro. As folhas caíram em prenúncio.
Tive certeza de que não há melhor bálsamo: após um grande desastre, qualquer acalento para a humanidade se chamará manhã de outono.

sábado, 5 de abril de 2008

Haicai Matinal

Navalha do tempo riscou um instante da manhã.
Mero bocejo de carros que iam e vinham pela avenida.
Aos fundos, um homem – alheio em seu próprio jardim.
Tinha a mesma melancolia do cinza e cortava o arbusto como quem diz: pra que vale a vida?
Sua altivez eram pequeníssimas folhas picadas – somente elas esvoaçavam o dia.
Em sua melhor atuação como jardineiro, o homem não fez nenhuma escultura.
Foi sua história que ficou emoldurada na aurora.
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