domingo, 3 de agosto de 2008

cara ou coroa

Tinha cinco anos. Seu tio o levou para assistir à disputa no jóquei da cidade. Ficou impressionado ao ver os senhores de chapéu com olhos fixos nos cavalos em disparada. As mãos apertadas com bilhetes entre os dedos. O roçar de dentes. O desejo.

Naquele dia, o menino também fez suas primeiras escolhas. Não sabia os números, mas tinha um certo faro pra perceber quem seria o vencedor, talvez sorte.

Na escola, passou a apostar mais que meras figurinhas, cartas, lanches, até concluir que a vida parecia demais com uma corrida de cavalos. Uma questão de sorte. Uma aposta, sem chance de volta.

Sua mãe demorou a perceber o tom desafiador na voz do filho. Aquele seu jeito de olhar como quem diz “pago pra ver”. Certa vez, pensou que era coisa da juventude e continuou a arrumar a sala.

Depois, o garoto passou a fazer apostas com ele mesmo. Difícil foi perder. Mudava as regras no meio do jogo, só pra não correr tamanho risco. Os amigos o ouviam, sussurando sozinho: par ou ímpar, valete ou reis, cara ou coroa.

Na hora da sua morte, quando já era um velho senhor de barbas brancas e cansadas, desistiu da aposta. De todas que ainda restavam. Deu um sorriso bobo como quem não quer nada. E dormiu sem ganhar ou perder.

Sobre as pequenas conversas

A partir de hoje, é pra valer. Toda a semana, o mesmo tema sob a ótica das duas autoras deste singelo blog.
Cabe a você, leitor, descobrir qual tema nos inspirou ou observar apenas as pequenas conversas que surgirem das linhas e entrelinhas.

domingo, 15 de junho de 2008

Bodas

As mãos trêmulas eram mais que um sinal evidente de nervosismo. Lembrança de um momento que mudou sua vida. Assim estava o nono em pleno dia de bodas de ouro. Parecia o mesmo rapaz que um dia teceu sonhos e traçou metas para um futuro familiar. Naquele momento, porém, seu sorriso era de orgulho. Orgulho de ver a família unida e barulhenta, ansiosa pela comemoração de uma união que lhes permitiu a vida.
Ambos em primorosa elegância, nono e nona, entraram na igreja. Se amor é paciência, convivência, complacência, eles aprenderam bem a lição. Pensar que a nona quase desistiu de casar, porque nono Nestor não tinha chapéu (e leia-se: na época, moços abastados e de família deveriam usar chapéu). Está certo que o nono também pensou duas vezes antes de se casar com Ana – diziam que ela era brava demais (que nada!).

Anos depois, todos comemoraram juntos.

P.S.: Pra mim, amor é a estante da sala, na casa dos nonos - repleta de porta-retratos.

domingo, 1 de junho de 2008

Como num céu em que as estrelas se apagam, ele não disse. Nada.
Mesmo depois de uns instantes, restava o brilho – a intenção.

Seus olhos eram um universo de segredos propensos.

Qualquer cometa atrapalhou a revelação, ofuscando – com seu brilho efêmero - as estrelas.
Por um momento.

sábado, 10 de maio de 2008

(Des)Construção

Passou a tarde construindo um castelo de cartas.
Desmoronar era o inevitável. Mesmo assim continuava, pelo gosto de ver paredes tão frágeis.

Por alguns instantes, é possível morar nele - pensava.
[Isso foi tudo que conseguiu sonhar.]

Tomou cuidado para criar pequenos corredores de ar, desníveis.
Eles seriam usados em sua própria queda.

Preferia prevê-los a esperar a mudança do tempo.
Qualquer tempestade repentina na alma era certeza de desilusão.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Confissão

Vem. Volta teu ouvido na direção do poço. Ouviste? É esse barulho do vazio que quero que percebas. Assim são teus olhos. Rasos. O silêncio é tão somente relance.
E eu falo de algo mais fundo, que insiste em calar. Quando olhas o chão, em fuga, eu colho teu olhar – um gesto de mãos, sem movimento. Queria mesmo te dar as mãos. Ouviste? Tu procuras respostas em lugares distantes. Mergulha. E as vais encontrar.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Ironia

Era um escritor. Era também um desconfiado. Tanto que não deixava que ninguém lesse seus escritos. Aposentou o computador com medo da Internet, deixou de lado a máquina de escrever por receio de levarem sua fita usada.
Acabou se isolando do mundo, ficando apenas com seus manuscritos. Melhor era prevenir. Mal sabia ele que o afanador de seus textos seria um franzino lápis.

domingo, 20 de abril de 2008

Trânsito

Gritou em plena rua. Estava parada esperando o sinal e deve ter se lembrado de qualquer coisa.
[Um acidente no peito, uma batida descompassada do coração.]
Os que ouviram imaginaram o prenúncio de um evento no trânsito. Mas as buzinas eram internas.
[Mesmo assim todos as ouviram.]
E ela ali. À espera de qualquer atropelamento menos brusco que o de suas lembranças.
Sua vida era uma estrada sem transeuntes.

sábado, 12 de abril de 2008

8:43

Hoje fez manhã de outono.
Não que a estação estivesse ausente dos calendários, mas apenas hoje ela apareceu escrita no céu, em maiúsculo azul. O vento abraçou as crianças que brincavam sob o sol e as famílias nem perceberam seu braço tímido e conselheiro. As folhas caíram em prenúncio.
Tive certeza de que não há melhor bálsamo: após um grande desastre, qualquer acalento para a humanidade se chamará manhã de outono.

sábado, 5 de abril de 2008

Haicai Matinal

Navalha do tempo riscou um instante da manhã.
Mero bocejo de carros que iam e vinham pela avenida.
Aos fundos, um homem – alheio em seu próprio jardim.
Tinha a mesma melancolia do cinza e cortava o arbusto como quem diz: pra que vale a vida?
Sua altivez eram pequeníssimas folhas picadas – somente elas esvoaçavam o dia.
Em sua melhor atuação como jardineiro, o homem não fez nenhuma escultura.
Foi sua história que ficou emoldurada na aurora.

terça-feira, 25 de março de 2008

Escolha

Se você quiser levar um ornitorrinco nas costas, fique à vontade. Mas não estarei ao seu lado quando você procurar o oceano mais próximo para se jogar - junto com ele.

Pode alimentá-lo com essas suas preocupações diárias. Com o trânsito congestionado, com o arranhão no piso da sala, com as roupas acumuladas pra passar.

Com seu ornitorrinco, você pode até se sentir um super-herói e achar que todos os seus problemas estarão resolvidos. E que poderá criticar os políticos e decidir sobre a vida dos outros com a cara limpa. Afinal, você tem um ornitorrinco.

Mas nem algo tão raro vai apagar o inevitável: a vida não é uma pizza que você monta com seus ingredientes favoritos. Assuma isso.

Já aproveite para assumir seus erros, medos e limitações.
Não, não quero que você se renda a eles como se rendeu ao ornitorrinco. Quero que os entenda. Que os enfrente.
Nem o maior oceano vai deter você.

Me avise se for tentar isso, que daí eu fico. Pode escolher: ou o ornitorrinco ou você.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Nostalgia

Lembrava de como era bom o tempo passado. A vida, as amizades, a convivência... Era fácil estar perto das pessoas, a alegria sempre estampada no rosto, dividida através de sorrisos, e abraços, e carinhos.

Só agora percebe como a vida e suas muitas voltas o castigaram. Ele sabe que, de certa forma, consentiu. No fundo, sempre torceu para que tudo fosse diferente. Porém, só torceu.

Hoje, não há mais carinhos, nem sorrisos calorosos, nem abraços. Só restaram as lembranças dos gestos e das sensações, quase vivos demais na memória e no coração.

terça-feira, 18 de março de 2008

Advinhação

Meu erro foi tentar prever teus passos. Como um trem que nunca chega, esperei por coisas que não poderiam acontecer.

Perdi duas ou três apostas comigo mesma até entender que vias outro mundo, tão diferente de mim.
Só não me julga porque a culpa é quase sempre tua.

Quando começava a entender meus erros, vinha o passo em falso em tua armadilha: teu sorriso a me dizer tudo bem.

Com tudo bem e sem cigarros eu viveria um século. Só que esse teu jeito, esse teu jeito me atropelou, me deixou caída no meio do asfalto. Nem ali o oráculo acertou.

Tudo bem. Meu erro mesmo foi gostar desse teu jeito. Imprevisível de saber onde iria me perder.

domingo, 16 de março de 2008

Monocromático

Teu sorriso parece chover hoje - tão cinza. Há qualquer coisa no canto da boca que denuncia a incerteza. Por que continuas achando que tu não és capaz de seguir adiante?

Deve ser medo que está em teu sorriso hoje.

E mesmo quando falas, pareces antecipar a dor [a dor é um arco-íris em tua voz]. A chuva vai adiante, tu sabes. Enquanto é garoa aqui, é tempestade lá.

Deves ir para dentro de ti para não se molhar.

Por enquanto, só vejo chuva em teu sorriso. Só não te esqueças que, durante o dilúvio, podes até nadar.

quinta-feira, 13 de março de 2008

(In)Certezas

- Irônico isso não? Morrer - a única certeza que se tem durante a vida.
- É como se fosse o destino dando um sorrisinho. Aquela cara de 'eu já sabia'.
- É.
- Triste ser logo com ela, não? Tão cheia de vida?
- Logo ela que gostava tanto de palavras.
- Das ditas e cantadas.
- Sim, gostava de celebrar a vida com palavras.
- E agora...
[Silêncio]
- Você acha que a gente vai para algum lugar?
- Depois?
- É.
- Acho que mesmo se a gente não for já está valendo à pena.
- O quê?
- Isso. Isso que a gente chama de vida.

domingo, 9 de março de 2008

Quase algodão

Formou-se como uma grande nuvem. Pequenos pedaços de vapor, pouco a pouco, juntaram-se em um manto acinzentado. Era princípio de tempestade. Das capazes de viajar quilômetros só para inundar o lugar certo – deserto da dor humana.
Foi assim naquele dia. Não demorou muito para que as lágrimas caíssem, revelando uma nuvem de saudade sobre seus olhos.
A brisa que ficou depois da chuva trouxe a certeza de que as coisas mais importantes da vida não voltam. Ficam apenas como lembranças no horizonte.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Cacofonia

Eu falo mas ninguém me ouve. Tento ouvir mas não consigo.

- Me dá uma mão aqui!
- Que horas são?
- Esta é a incessante busca dela.
- Vou levar o cachorro do meu tio pra passear.
- Ele a disputa com afinco.
- Que, Jo?

Deve ser tudo culpa da cacofonia que me cerca.

[...] rabisco o sol que a chuva apagou

Era tão sereno o ar da tarde, aquele ar inconfundível. A brisa feito o suspiro de quem chega em casa, alívio.
Foi a menina quem quebrou ar da tarde. Como um aviãozinho, tentava chegar ao céu. À parte final da amarelinha, enquanto brincava sozinha, com sua energia saltitante.
Primeiro riscou a giz. Escolheu a pedrinha com a aerodinâmica mais perfeita que encontrou e saiu a pular pelas lajotas desenhadas.
O céu era tão alaranjado e próximo. Tão sereno e próximo que deu vontade de ser sempre tarde. Tarde pra brincar feito menina. Tarde pra sonhar feito criança.

domingo, 2 de março de 2008

II

Elas.

Sempre elas. Parecem gafanhotos com suas asas de vidro. Cortantes e o mesmo zumbido. Têm aquele gosto verde que se perde na escuridão noturna. Saem aos saltos, milimetricamente pensados, por caminhos tão iguais. Da boca ao ouvido. Da razão ao sentido. Esse jeito tão artrópode de dizer o não dito.

Você falou um exoesqueleto, eu bem vi as falsas vogais.

Palavras articuladas são gafanhotos. Tão verdes, tão pouco naturais.

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Do dia

*pequeníssimo diálogo para passar o tempo*
- que chuva hoje, hein?
- pois é, será que amanhã dá sol?
- não sei não. tomara né? fim de semana... tomara.
- é...

*pequeníssimas pinturas do cinzento*
Uma criança imagina amarelinha nas poças de chuva.
A fumaça do cigarro mistura-se à chuva quase gasosa – fina.
O colorido do guarda-chuva é quase um arco-íris para o dia.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Efêmero

Invariavelmente, na rua ou no ônibus, esbarrando diariamente em centenas de pessoas diferentes, escutamos pequenas partes da conversa alheia. Ontem, uma em particular me chamou a atenção:

- E você? Tá ainda casada?
- (entediada) Tou né.
- Nossa, faz quanto tempo já?
- Nove meses.

Pois é, depois de nove meses ela continua está casada. Pelo andar da carruagem, e o tom de felicidade com que ela dialogou, o divórcio não demora a chegar.
Diante disso, me pergunto: para quê casamento, se, hoje em dia, tudo é tão efêmero, tão rápido? Não basta o sentimento, e tudo o que vem com ele, naquele momento?
Sou a favor do eterno namoro, eterno enquanto durar. Se acabar, paciência. Cada um para o seu lado. Para quê complicar o que é tão simples?

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Palavras I

Tenho exercitado pouco a escrita. São palavras que embrulham meu estômago quando estou cansada. Então descanso e as letras parecem cascatas sob a pele.
Vontade de dizer algo e não poder.
Vontade de inventar boas novas, sem saber ao certo por onde começo. São fonemas que escuto ao pé do ouvido e eles me deixam zonza. Perdi a linha em algum lugar da estação. E as entrelinhas fazem silêncio demais.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

A letra ‘e’

É que a gente passa a vida se preocupando com coisas bobas. Larga esse papel da mão e olha pra mim. Me diz todas as palavras que começam com ‘e’. Todas as que tu lembras, vai.
Tá, eu sei, a gente fazia isso na escola e era ridículo. Eu me esquecia das palavras mais banais, como escova, espelho e espírito. E tu inventavas variações pra esperançoso, estalactite, esquizofrênico.
Já percebeste como a gente esquece palavras simples? Tem tanta coisa que a gente nem diz mais, porque algumas histórias se perderam no tempo e porque nos achamos adultos demais.
Sim, eu sei. Odeias quando minhas frases rimam, mesmo sendo rimas imperfeitas. Mas larga esse papel, vai. É porque tua voz cínica dizendo esdrúxula é ainda o que me deixa mais viva. Aceito até perder em paz.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Cotidiano

Ontem à noite, estava saindo de casa, pensando na vida de cara fechada, como de praxe. Foi quando olhei para frente e me deparei com um rapaz moreno, de cabelo comprido vestido com roupas simples. Ao me ver séria, ele, com uma expressão assustada, falou: "não se assusta não, moça".
Imediatamente a vergonha e a culpa tomaram conta de mim. O que estamos fazendo com os outros? E conosco? Afinal, ele estava apenas recebendo da vizinha o pagamento por um trabalho que fez.
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